terça-feira, 27 de maio de 2008

RAFAEL / 12


"A natureza é o grande sacerdote, o grande pintor, o grande poeta sagrado e o grande musico  de Deus. O ninho de andorinhas onde os filhinhos chamam e saúdam o pai e a mãe, sob a cornija arruinada de um velho templo; os suspiros do  vento que sopra do mar e que parecem trazer aos despovoados claustros da montanha as palpitações da vela, os gemidos da vaga e as últimas notas do canto do pescador; as emanações embalsamadas que atravessam, por momentos, a nave; as flores que se desfolham e cujas pétalas caem sobre os túmulos; o balouçar das sanefas verdejantes que vestem os muros; o eco sonoro e repercutido dos passos do visitante naqueles subterrâneos onde repousam os mortos; tudo isto é tão cheio de unção, tão piedoso, tão infindo de impressões, como outrora o mosteiro em todo o seu esplendor sagrado. " (continua)

sábado, 24 de maio de 2008

RAFAEL / 11







"Mas eu tinha o coração demasiadamente cheio das minhas próprias impressões para poder interessar-me por essa solidão. O ascetismo e o entusiasmo dos primeiros mosteiros converterem-se numa profissão. Depois, vidas sem vidas sem elos entre os freires, sem utilidade para o mundo tinham-se consumido nesses claustros, não deixando vestígios, nem saudades sobre os túmulos. Extasiei-me perante a rapidez com que a natureza se apodera dos sítios ermos e das habitações abandonadas pelo homem, e quanto a arquitectura viva de arbustos, que sebes enraízam na argamassa de silvas, heras flutuantes, goivos suspensos, plantas trepadeiras estendendo o seu espesso manto sobre as fendas dos muros."( continua)

terça-feira, 20 de maio de 2008

RAFAEL/10



"Era já superior ás minhas forças a repercussão dessas comoções e a vibração interior desse silêncio. Chamei as mulheres, que soltaram gritos de surpresa ao ver aquela ressurreição, que lhes parecia milagrosa. No mesmo instante entrou o médico, que eu mandara chamar na véspera. Recomendou sossego e algumas infusões de plantas daquelas montanhas, que acalmam os movimentos do coração."(continua)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

RAFAEL/9



"A brisa matutina, pura e fresca despertara-a enquanto eu rezava, á beira do seu leito, com o rosto coberto pelos meus cabelos e inundado de lágrimas. Ela tivera tempo de ver o ardor da minha compaixão no fervor com que eu orava, e reflectira suficientemente para me reconhecer á claridade que já entrava, a jorros, no quarto. Desmaiada no isolamento e na indiferença, despertava na compaixão, no interesse e talvez no amor de um piedoso desconhecido."(Continua)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

RAFAEL/8



" O primeiro arrebol da manhã começava a filtrar-se quase insensivelmente pelas fendas da fresta da trapeira. Fui abri-la, esperando que o ar fresco, matutino e balsâmico, do lago e das montanhas, e talvez também o primeiro raio de sol, tivessem a influência do acordar geral da natureza sobre essa existência que eu já quisera despertar á custa da minha. Um ar fresco e quase glacial espalhou-se pelo quarto e apagou a candeia amortecida. Mas na cama não houve sinal de vida. Ouvi as pobres aldeãs, lá em baixo, rezando juntas, antes de principiar os trabalhos do dia. A ideia de rezar ocorreu-me também ao coração, como surge a todas as almas que se sentem exaustas, e que necessitam de que uma força misteriosa e sobre humana se alie á tensão impotente dos seus desejos.  Ajoelhei-me no sobrado, com as mãos unidas, á beira do leito e os olhos fitos no rosto da jovem."(Continua)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

RAFAEL/7



"Jamais o olhar e a alma de um homem se abismaram durante tantas horas em tão dolorosa e singular contemplação. hesitante entre a morte e o amor, achava-me incapaz de compreender se a figura angelical, adormecida ante meus olhos, era uma eterna dor ou uma eterna adoração, que essa noite me preparava com o seu mistério, ou que a madrugada ia restituir-me com o regresso á vida. Os espasmos do sono, que não eram bastante fortes para a reanimar, tinham repelido o lençol,  e descoberto um dos ombros, onde caíam os cabelos em grossos anéis pretos e espessos. O colo, prostrado no travesseiro estava curvado pelo peso da cabeça, que pendia para trás um pouco inclinada para o lado direito. Um dos braços tinha-se desembaraçado da roupa e deixava ver a nudez  de um cotovelo de marfim."(Continua)

terça-feira, 13 de maio de 2008

RAFAEL/6



" Trepei pela escada, entrei no quarto e inclinei-me sobre o leito, que o crepúsculo iluminava ainda. Passei-lhe a mão pela fronte e achei-a em fogo; percebi o movimento fraco, mas regular, da respiração, que abaixava e levantava alternadamente sobre o peito, o grosso lençol de linho cru. Mandei calar as mulheres, e dando dinheiro a um dos barqueiros, mandei-o chamar um médico. Disseram-me que havia um a duas léguas do Alto Combe, numa das aldeias do monte do Gato. O homem partiu, correndo, e os outros abancaram, animados pela certeza de que a senhora não estava morta. As mulheres andavam do quarto para a sala e da adega para a capoeira preparando a ceia."(Continua)

domingo, 11 de maio de 2008

RAFAEL/5



" Precipitamo-nos no barco para erguer  a moribunda do seu leito de espuma, e levá-la para além dos rochedos. Pus-lhe a mão sobre o coração como a teria colocado sobre um globo de mármore, aproximei o meu ouvido dos lábios como o aproximaria da boca de uma criança adormecida. O coração batia irregularmente, mas com força; a respiração era sensível e quente; compreendi que se tratava apenas de um longo desmaio, em consequência do terror e do frio da água." (Continua)

sábado, 10 de maio de 2008

RAFAEL/4



"Os cabelos flutuavam-lhe em volta do pescoço e dos ombros, como as asas de uma ave negra meio submersa á beira de um tanque. O rosto, cujas cores não se haviam desvanecido de repente, tinha a expressão do sono mais tranquilo. Apresentava essa beleza sobrenatural que o derradeiro suspiro deixa no rosto das raparigas mortas, como o mais encantador raio de vida na fronte donde desaparece ou como o primeiro crepúsculo da imortalidade nas feições  que quer divinizar na memória dos sobreviventes. Nunca a vira e nunca mais a tornarei a ver tão celestialmente transfigurada." (Continua)

sexta-feira, 9 de maio de 2008

RAFAEL/3



"Foi longa e horrível a ansiedade da minha alma durante a hora que empregamos em atravessar quase toda a largura do lago e alcançar o barco em perigo. Quando, finalmente, o abordamos, já ele estava próximo da praia, para onde uma onda o havia arremessado, á nossa vista, sobre a areia, junto ás ruínas da abadia. soltamos um grito de alegria e deitamo-nos á água, para mais depressa corrermos ao barco e conduzir á praia a naufraga doente.  O pobre barqueiro, consternado, chamava-nos em seu auxílio com gestos de aflição e brados de angústia. Mostrava.nos com a mão o fundo do barco, que não podíamos distinguir ainda; ao chegar, vimos a jovem estendida sem sentidos, com as pernas, o corpo e os braços cobertos de água gelada e de flocos de espuma; só tinha o busto fora de água, e a cabeça, como a de uma defunta, apoiada á caixinha de madeira que serve para guardar, á popa, as redes e as provisões dos barqueiros."(Continua)

RAFAEL/2


"A sorte ou o destino, que dirigiram, naquele dia, a minha vela indecisa no lago, tinham-me feito navegar num barco maior, tripulado por quatro homens vigorosos. Eu ia visitar, a uma ilha do lago, um parente do meu amigo de Chambery, o senhor de Châtillon, cuja casa se erguia sobre um rochedo, na parte mais elevada da ilha". (Continua)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

RAFAEL/1


"Passava uma parte dos dias no lago. Os barqueiros conheciam-me: ainda se lembram, segundo me dizem, das longas navegações a que eu os obrigava pelos golfos mais recônditos nas duas praias de França e da Sabóia. A jovem estrangeira também ás vezes embarcava, pelo meio dia, para passeios menos longos. Os barqueiros, vaidosos de a conduzir e atentos aos menores sintomas de fresco, de nuvens ou ventos, tinham o cuidado de a prevenir; preferiam a saúde e a vida dela ao salário dos seus dias perdidos". (Continua)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

RAFAEL/0


" Renunciei aos meus passeios pelas montanhas quando as primeiras neves começaram a coroar os pinheiros nos altos cumes da Sabóia. O calor suave e prolongado do fim de Outubro concentrara-se no fundo do vale. O ar estava ainda tépido nas margens e sobre as águas do lago. Na extensa alameda de choupos que para lá conduz, havia, ao meio dia, uma fraca claridade de sol, oscilações de ramos e murmúrios de brisas, que me encantavam." (continua...)

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